14 março 2006

A velha que respirava poemas (Ilustração concluída por Vitor Ferreira/Who)

Era Outono de 1996, eu tinha 18 anos, estava no meu segundo ano da Universidade. O colégio onde tinha aulas ficava a uns 20 minutos de casa e eu percorria esse caminho quatro vezes por dia, serpenteando as muralhas da cidade. Enquanto o caminho se fazia no centro da cidade, os meus olhos constantemente varriam as casas, as janelas, as portas, as pedras do chão; quando caminhava ao lado da muralha, gostava que os meus dedos fossem deslizando no granito áspero. Acabava o centro da cidade, de casas velhas e entrava na rua dos bairros novos, com menos para ver, onde as pessoas se cruzavam demasiado próximas de mim e fixavam os olhos nos meus. Incomodado, habituei-me a andar com os olhos postos no chão; no Outono, vendo as folhas secas douradas a voar dos meus pés a cada passo arrastado. O meu corpo guiava-se sozinho pelo caminho de tantas vezes e isso libertava-me o espírito, num estado de semi-hipnose. Um dia, fui interrompido no mergulho fundo da minha consciência. Vi uma mão no ar, acenando, presa a um corpo cilíndrico ridiculamente apoiado numa frágil bengala, coroado por uma farta cabeleira branca, que multiplicava o brilho da ténue luz de Outono. A mão acenava em direcção a mim ou em direcção ao mundo, em desespero. “Desculpe, perguntou a velha. Não foi consigo que eu marquei um encontro para dizer poemas?” “Não, não foi”, respondi com o sorriso com que cruelmente ferimos os loucos. Preparava-me para fugir dela como os lúcidos fogem dos loucos e os loucos fogem dos lúcidos, mas os meus olhos prenderam-se nos olhos dela, azuis profundos como profundo é o mar, cristais que se romperam na agudeza do meu olhar, desfazendo-se em água. E no meio das lágrimas, ela soluçava, levava a mão ao bolso, tirava um lenço enrolado, com que limpava as lágrimas e a saliva e, soluçando, pediu-me “Posso dizer-lhe um poema, só um poema, que os poemas são o meu oxigénio e sem eles eu sufoco e agonio?...”. Pode, pode, velha Milda,, encha os seus pulmões e derrame esse gás sobre mim... Milda Pinto, velha cilíndrica de farta cabeleira branca e olhos muito azuis quase cegos, nos seus 78 anos, desembrulhou poemas da sua memória, uns atrás dos outros, só parando para limpar a saliva que lhe saltava dos lábios, de vez em quando ajeitando a dentadura postiça e, no meio da poesia, a poesia dos velhos “os dentes são falsos, sabe?...” e lá continuava...
Cheguei a casa com a sensação que tinha vivido um sonho. No dia seguinte, a cabeleira branca brilhava no meio do cinzento do Outono, e os olhos azuis procuravam-me na vinda da universidade. Parava dia após dia em frente ao lar de idosos, onde a velha Milda, ridiculamente apoiada numa frágil bengala, escondia o muro que a sustentava atrás de si. Lançava-me o bafo fresco do seu oxigénio. Depois parava, falava dos filhos, dos netos, da sua juventude em Moçambique, onde os crocodilos, nos dias de cheia, vinham até à porta da sua casa, chorava, dizia que passava os dias à procura de quem lhe ouvisse os poemas; algumas pessoas paravam e fugiam, outras sorriam e não paravam, outras diziam que iam só ali fechar o carro e não mais voltavam. Chamava-me amigo, perguntava coisas sobre mim, mas gostava mais de falar sobre ela. Disse-me que escrevia poemas, que queria escrever um livro, mas que tinha tudo desorganizado, que precisava que eu lhe comprasse um caderno e lhe escrevesse tudo certinho, para poder enviar para a editora. Entrei no lar e recebi um maço de folhas velhas, de todas as formas. Comprei o caderno e passei noites a escrever poemas, a alma daquela velha confusa, poemas onde as frases se repetiam, como se tudo fosse um grande poema recortado e espalhado na imensidão da sua alma.

“Em profunda análise
reconheço que o meu grande mal foi ter nascido.
Mergulho a pique no mar da minha imaginação.
Chego ao fundo. E vejo, claramente,
Como seria bom se tivesse morrido
Nesses segundos em que nasci.
Evitava todo o meu calvário.”

Durante muito tempo deixei de encontrá-la no caminho para casa mas, não consigo explicar porquê, não bati na porta do lar, não a procurei. Meses depois estava sentada no banco do jardim, rendida à fragilidade da sua bengala. Chorou, disse esteve quase morta, caiu e bateu com a cabeça. Foi a última vez que a vi. No Natal deixei-lhe um cartão na caixa do correio mas não bati à porta. Não sei porque não o consegui fazer, mas penso que será sempre difícil para mim aproximar-me de alguém que não me acene com o braço. Dia 5 de Maio de 2000, soube, pelo jornal, que Milda Pinto, com 82 anos, tinha morrido. A minha cara amiga Milda, que cuspiu sobre mim a sua exaltação!...

“Incontestável!... Encontrei-me.
Eu não sabia que era eu. Ignorava-me.
E, quantas vezes me olhei sem me conhecer.

Encontrei-me acidentalmente,
E sem qualquer explicação.
Anunciei-me. Era eu. Ali estava.

Vertical, autêntica, genuína como sempre.
Aonde? Em qualquer parte do Mundo.
E foi necessário ir tão longe?

Que instante tão Divino!...
E quis logo conhecer-me – quero, pois,
Saber quem sou. Qual a minha origem?
Que fiz? Que faço e para onde vou?...

Porque eu sou outra e não aquela que pareço.
E é essa oculta que eu desejo desvendar.
Autêntica ou duvidosa,
Concreta ou abstracta. Eu já lá não estava.
Já tinha regressado ao nada.”

Eu acredito que sim: que somos eternamente responsáveis.


Leonel Silva, 27 anos
Doutorando em Química

4 comentários:

Anónimo disse...

a minha avó...
obrigada.

Anónimo disse...

e a minha avó. q saudade.

Anónimo disse...

querida mae quantas saudades faço 48 anos e raros sao os dias que nao penso em ti.peço-te que me perdoes de todas as maldades que cometi,nao devia estar lucido.andei morto entre os vivos e agora que acordei so posso pedir perdao pelos actos cometidos.

Anónimo disse...

amo-te mãe.

Sou o teu filho primeiro e teu eterno fã.
Beijos