14 março 2006

Dos dois lados os lábios (Ilustração - Vasco Colombo)

Há qualquer coisa de irreal, absurdo como um poema, no jovem que, de um lado da rua, envia numa parábola um beijo para a puta que guarda, com o olhar, do outro lado. O dia estava semi-frio, semi-encoberto... era apenas um semi-dia, em que a minha consciência não despertara completamente, nem o meu corpo pesado. Descia e subia as ruas da cidade à espera de uma novidade para os sentidos, mas até a beleza das casas me enchia de uma perturbadora monotonia. Precisava, urgentemente, de encontrar aquele instante que persigo diariamente, na esperança de transformar o meu quotidiano desnecessário num quotidiano com a pouca necessidade de um poema. E fui encontrá-lo nos dois jovens, separados por uma rua, mas unidos pela parábola de um beijo, lançado no ar e caído nos lábios daquela jovem puta. Tão tímido beijo e cheio de ternura, escondido pelos cabelos de palha suja – não se espera que uma puta receba beijos de amor; não se espera, sequer, que ela conheça o que isso é. Imagino que, quando, um dos lados da rua estiver solitário, enviando beijos no ar, o outro lado vazio esteja quieto, deixando o corpo ondular ao ritmo de uma presença que ignora, cerrando os lábios, sonhando com o momento em que a rua deixe de separar os seus lados e a parábola se encurte até se extinguir num ponto e as presenças deixem de ser insignificantes e até perturbantes. Tive vontade de arrancar dos dois lados os lábios, e uni-los, entrelaçá-los, atá-los em volta com a linha da invisível parábola. Não me faltam linhas de parábola para atar os beijos dos outros, eu que não tenho beijos para mim.

Leonel Silva, 27 anos
Doutorando em Química

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