15 março 2006

Pastor de Árvores (Ilustração concluída por Alain Gonçalves/Who)

Estava eu sentado na paragem do autocarro à espera da carreira que ía de Vila de Rei para a Sertã quando, vindo do nada, apareceu um senhor na casa dos 70 anos, com uma bengala em madeira de marmeleiro muito resistente. Eu cumprimentei-o com um bom-dia. Ai que ele me retorquiu meio irado.
"Bom dia só se for para si, que é jovem. Agora eu, que sou pastor e tenho mais de 50 copas a meu cargo, que ainda por cima não são minhas, são do meu patrão que é mau como as cobras. Tão torcido quanto esta bengala que me guia há 34 anos."
Houve um silêncio no discurso dele, dando tempo para eu pensar no que ele queira dizer com “50 copas a meu cargo”. Não cheguei a conclusão nenhuma e ía-lhe perguntar isso quando ele entrou com uma conversa completamente diferente.
"Então você é daqui?" E com menos raiva na voz "Está a estudar? Mas na Sertã não há universidade nenhuma. Devia era fazer como o meu mais novo que foi para doutor. Isso é que dá dinheiro."
Eu devo ter feito uma cara muito estranha porque ainda estava a pensar na profissão do senhor e na mudança da conversa.
"Doutor médico é o que ele é. Dá bastante dinheiro ou pensa o quê?"
"Desculpe, você disse há bocado que era pastor de 50 cabeças de gado…"
"Eu disse que era pastor de 50 copas.", corrijiu muito chateado por ter repetido. "Os pinheiros não se alimentam sozinhos, deve pensar que a água e o adubo vêm por obra e graça do senhor." E ao dizer isto benzeu-se "Eu levanto-me todos os dias por volta das 8 da manhã para andar com os pinheiros por aí. Você havia de ver o sobreiro que encontrei abandonado. Não sei como é que as pessoas abandonam os sobreiros assim sem mais nem menos." Nunca tinha ouvido falar em tal coisa. O senhor devia ter um ou mais parafusos a menos.
"Mas como é que os pinheiros se mexem?"
"Já percebi, deve ser um menino da cidade. É de Lisboa?"
"Sim sou, estou aqui…"
"Nem vale a pena estar a falar mais, eu vi logo pelo ar. Isto não vem nos livros ou nos computadores. E eles não sabem nada." e virando a cara diz "Devia haver uma lei que obrigasse os lisboetas a visitar o campo." Tinha de lhe perguntar como é que ele pastava os pinheiros e o tal sobreiro abandonado. E ele continuou "Uma vez ou mais por ano para verem que os ovos não vêm do frigorífico, que eu já ouvi um de Lisboa a dizer isso na televisão."
Ele calou-se por um segundo e aproveitei.
"Desculpe, eu posso ser de Lisboa mas ambos os meus pais são daqui. E nunca tinha ouvido falar de pastar árvores. Sei que tem de se pastar as cabras, as ovelhas e vacas, mas árvores nunca. Como é que o faz?"
"Não são árvores, são pinheiros." diz ele de bengala erguida para o céu. "Só os pinheiros e sobreiros é que se pastam, as outras árvores não precisam."
"Mas…"
"Não vai para a Sertã? É que a camioneta vem aí."
Entrei na camioneta com a mesma dúvida, como é que se pastam as árvores ou os pinheiros como ele diz? Espero que quando voltar encontre outra vez esse tal "pastor".

Duarte Nuno
28 anos
Copy Desk
Massamá

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