15 março 2006

O roupão (Ilustração concluída por JB Pereira)


Sou a melhor companhia da Dona Alice. Pelo menos é o que eu acho. Passo os dias inteiros colado a ela, sentindo o calor da sua carne mole. Não me incomoda nada e até aprecio o seu toque que também me aquece. Aliás, sou feliz porque sei que ela precisa de mim e soube isso desde o primeiro dia em que me trouxe para o seu apartamento.
Estou com a Dona Alice há mais de 3 anos e a vida dela tem sido sempre a mesma: passa quase todos os dias em casa, limpando todos os seus cantos pelo menos uma vez por semana. Fala muitas vezes ao telefone, com aquela voz que deve chegar facilmente a todo o prédio. De manhã costuma ouvir rádio e à tarde vê televisão. Põe o som sempre muito alto. Até aposto que os vizinhos lhe rogam pragas, principalmente aos fins-de-semana de manhã. Mas, às vezes, quem vive por cima de nós também se vinga: um dia destes o adolescente do andar de cima pôs uma música cavernosa, o que deixou a Dona Alice desesperada e vociferante. Ela até chorou. As vibrações passaram por mim em cascatas sonoras e eu senti o corpo da Dona Alice a tremer. Escavacou uma vassoura no tecto e nem assim acabou com o estardalhaço. Furiosa, subiu ao andar de cima. Não tive outro remédio e também fui com ela. Um adolescente com um estranho corte de cabelo abriu a porta. Riu-se, trocista, e fechou a porta na cara da mulher. Ela ainda berrou mais e só quando desceu as escadas é que o som diminui. Até aposto que o rapaz esteve sempre a espreitá-la pelo olho da porta.
Quando não estou com a Dona Alice estou estendido na cama ou enrodilhado numa cadeira. Às vezes fico todo esticadinho atrás da porta do quarto ou da porta da casa de banho. Mas, muitas vezes, costumo ficar fechado num roupeiro. Não que a Dona Alice seja má para mim. Eu até não me importo. Só que no Inverno costumo ganhar alguns odores bolorentos. Ela nem parece notar muito. Sou capaz de andar meses assim, sem tomar um banho. Gosto do meu cheiro acabado de lavar mas não aprecio muito o modo com ela me lava. Giro e rodo de um lado para o outro, às vezes lentamente, outras numa completa vertigem.
No outro dia ela chorou (ela chora sempre muito) e depois limpou as lágrimas a mim. Quando secaram fiquei áspero. Eu não sou capaz de chorar. Mas às vezes também fico com os cheiros dela. Pelo modo como a Dona Alice torce o nariz sei se são agradáveis ou não.

* * *

A Dona Alice parece-me muito só e eu devo ser o seu único conforto e aconchego. Não passo de um simples roupão turco, cor-de-rosa. Ela comprou-me numa grande superfície e a etiqueta diz que fui fabricado na China. Sou 100% de algodão e posso ir à máquina de lavar a 40º. A minha função é ser um simples agasalho de trazer por casa mas sei que sou muito mais que isso. E a Dona Alice também.

Francisco Duarte, 41 anos
Redactor publicitário

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