14 março 2006

O que o mar me trouxe (Sem ilustrador)

Nunca pensei que um dia o mar me pudesse trazer alguma coisa. Mas uma vez trouxe.
O Atlântico deve ter uma estranha forma de recompensar as pessoas. Afoga-as, esventrando os seus navios, e depois larga na praia restos de vidas. Camisolas ensopadas, alguns objectos pessoais e muitos sacos de plástico. Quando está mal-disposto, o mar pouco mais nos dá a não ser dor, lixo e desespero.
Não estava preparado para um golpe de sorte mas, sem o saber, eu estava sentado na areia à espera dele. Aproximou-se de mim e falou numa voz juvenil.
— Desculpe, tem horas que me diga?
Levantei a cabeça e o meu olhar encontrou uma mulher jovem, de longos cabelos louros numa cara de menina mas num corpo longilíneo. Olhava-me fixamente com uns olhos de um azul muito mais perto da cor do céu do que da cor do mar. Por momentos fiquei boquiaberto, como se estivesse a ver uma sereia que naquele momento acabara de me paralizar. Adivinhando a minha hesitação, ela continuou, impaciente:
— Tem horas, se faz favor?
A sua voz, apesar de alguma rispidez na pergunta, era suave e encaixava-se perfeitamente no seu aspecto jovem e descontraído. O blusão de aviador que vestia estava fechado até cima e os jeans apertados faziam-na ainda mais alta do que parecia. Com a sua figura esbelta, calculo que nunca passasse despercebida.
— São 5 e meia. — Disse eu, numa voz que pretendi grave mas que me saíu ligeiramente estridente.
Logo aí devo ter perdido alguns pontos na sua consideração, se é que eu valia alguma coisa na sua escala de valores.
De onde tinha surgido ela? Eu estava a olhar para o mar, perdido lá ao fundo, num horizonte de pensamentos e esta figura aparecia como se do nada viesse.
Nos seus poucos gestos e escassas palavras só pude fazer conjecturas: adivinhei uma mulher decidida mas esquiva, exibindo um olhar que diz muito de si, mesmo julgando que não se revela aos outros. A cor e a expressão dos seus olhos deve traí-la muitas vezes, deixando-a vulnerável. Mas é uma fragilidade aparente, pensei eu. Sente-se a sua fibra muito para além de uma cara ainda adolescente.
“Bolas, como é atraente”, engasguei-me neste pensamento.
Num curto espaço de tempo, quando até as ondas do mar deixaram de se ouvir, vislumbrei a sua sinceridade e timidez num rubor tão evidente que me deixou enternecido.
— Obrigado.
Baixou a cabeça, ainda com a cara vermelha, e passou por mim, deixando um leve e discreto perfume no ar, que logo se misturou com a maresia. Por um momento pensei em rodar a minha cabeça na sua direcção e inventar uma pergunta tola só para ela me olhar de novo com os seus magníficos olhos azuis. Não tive essa coragem. Em vez disso, levantei-me e comecei a caminhar na direcção oposta, trilhando as suas pegadas na areia molhada. Segui-as, tentando perceber de onde tinham surgido. Para meu espanto vinham directamente do mar.

Francisco Duarte, 41 anos
Redactor publicitário

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito Parabéns pela história, pela maneira como descreves e como consegues transparecer todo o cenário; as cores, os sons e as situações. Está Muuuito Bom.