15 março 2006

La Suerte para Hoy (Ilustração concluída por Alain Corbel)

Ele era apenas um vendedor de lotaria. E sabe-se é sabido que aos vendedores de lotaria ninguém presta atenção. Todos os dias lá o via, como quem não vê, na esquina da minha rua. Sentado num banco de madeira pregava a sorte a quem passava: “La sueeeeeeerte para hoy!” O sotaque era espanhol. A estrangeira era eu. A rua era uma das mil que se enchem qual formigueiro humano diariamente em Barcelona. Foi há dois anos atrás.
Éramos vizinhos, o senhor da lotaria e eu. Todos os dias lá o via, como quem não vê, na esquina da minha rua. Todos os dias, a frase cada vez mais familiar juntava-se ao sorriso que dizia olá: “La Suuueeeeerte para hoy”.
Aos poucos fomos ficando amigos, como qualquer vizinho que se preze, amigos de sorriso diário e olhar cúmplice. Com o passar do tempo, já lhe reconhecia a ironia na voz quando apregoava: “La suueeeeeerte para hoy”. Percebi rapidamente que a sua escolha não era aleatória e de inocente tinha pouco. O senhor da lotaria só se dava ao trabalho de abrir a boca quando meninas bonitas por ali desfilavam. Era vê-lo girar a cabeça para a esquerda e para a direita, a controlar o movimento da “calle” com sorriso provocador. Quando surgia alguma menina mais “bamboleante”, tirava-lhes as medidas da cabeça aos pés e, com voz malandra e divertida, provocava - tão alto quanto fosse necessário para que olhassem para ele: “LA SUUEEERRRTEEEE PARA HOY”. A passagem diária pela banca recheada de papelinhos coloridos a prometer fortunas era já uma forma de começar bem o dia.
Uma bela manhã, decidi sentar-me ao seu lado. Afinal, já nos conhecíamos de longa data e quis ver pelos seus olhos. Com os olhos do vendedor de lotaria a quem ninguém presta atenção.
Chamava-se Maxi e ficámos à conversa cerca de duas horas. Surpresa atrás de surpresa. Apercebi-me que este vendedor de lotaria era na verdade o mais informado morador da cidade e que sabia tudo sobre o que passava em Barcelona e sobre maior parte das pessoas que por ali andavam, distraídas, diariamente . Não conseguia ir-me embora. Ficaria ali o dia inteiro, escondida atrás dos papelinhos coloridos a ouvi-lo e a rir-me por entre os piropos descarados disfarçados com a frase de sempre: “La sueeeerrte”. Nesta manhã, conheci também todos os seniors do bairro. Os velhotes, entre roupões, chinelos e bengalas pareciam estar sempre ali casualmente. Na verdade eram cúmplices da brincadeira de Maxi e reuniam-se ali para a gargalhada diária.

Joana Pinto Correia
Jornalista e Relações públicas
26 anos

Sem comentários: