tag:blogger.com,1999:blog-239667922024-03-08T21:04:15.939+00:00A VIDA EM A4"A Vida em A4", com Bernardo Mendonça e Rui Portulez, na Rádio Oxigénio.
Toda a terça-feira, entre as 9.30 e as 10.00 da manhã, aceitam-se histórias da vida real, vividas ou observadas, em "A Vida em A4" (e em mp3).
Envie as suas, numa folha a4 ou em mp3, para vida.a4@gmail.com
As melhores serão escolhidas...
psss - O primeiro livro está pronto e prestes a ser editado. Participe no segundo.RPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.comBlogger14125tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-90787302565875554102007-03-16T14:46:00.001+00:002007-03-16T14:49:08.430+00:00<p class="MsoNormal" style=""><span style="font-family:Arial;"><a href="http://avidaema4.blogspot.com"><span style="font-size:180%;">A vida em A4 - Blog oficial e único a partir deste momento.<br />Vá lá...</span></a><br /></span></p> <p class="MsoNormal" style=""><span style="font-family:Arial;"><br /></span></p> <p class="MsoNormal" style=""><span style="font-family:Arial;">"Histórias com baleias que procuram namorado para assunto sério na Internet (e acabam a tomar óleo de fígado de bacalhau), vendedores de lotaria engatatões (com costela rasta), escritores que trocam o teclado pelos braços de uma prostituta (por 150 euros...) "<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal" style=""><span style="font-family:Arial;"><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]--><o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal" style=""><span style="font-family:Arial;">Toda a terça-feira, entre as 9.30 e as 10.00 da manhã, aceitam-se histórias da vida real, vividas ou observadas, em "A Vida em A4" (e em mp3).<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal" style=""><span style="font-family:Arial;">Envie as suas, numa folha a4 ou em mp3, para <span style="color: rgb(51, 204, 255);">vida.a4@gmail.com</span><o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal" style=""><span style="font-family:Arial;">As melhores serão escolhidas...<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal" style=""><span style="font-family:Arial;"><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]--><o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal" style=""><span style="font-family:Arial;">"A Vida em A4", com Bernardo Mendonça e Rui Portulez, na Rádio Oxigénio. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal" style=""><span style="font-family:Arial;"><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]--><o:p></o:p></span></p> <span style=";font-family:Arial;font-size:10;" >psss - O primeiro livro está pronto e prestes a ser editado. Participe no segundo.<br /><br /><br /><br /></span><span style="font-size:100%;"><br /><br /><a style="font-family: arial;" href="http://www.zshare.net/audio/avidaema4-n1-mp3.html">A vida em A4</a><br /><br /><br /><span style="font-family:arial;">1º Capítulo. Uma descarga de cultura!<br /> Excerto da interpretação de "10 Donuts", texto de Tita Martins, por António Feio.</span><br /><span style="font-family:arial;"> Tráfico de influências culturais e algumas private jokes, com recomendação de livro e alguma informação útil à mistura, por Bernardo Mendonça e Rui Portulez</span></span>RPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142414449584784082006-03-15T09:20:00.000+00:002006-05-05T12:28:48.840+01:00O roupão (Ilustração concluída por JB Pereira)<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/933/2451/1600/ROUPAO.jpg"><img style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/933/2451/320/ROUPAO.jpg" border="0" /></a><br /><strong>Sou a melhor companhia da Dona Alice</strong>. Pelo menos é o que eu acho. Passo os dias inteiros colado a ela, sentindo o calor da sua carne mole. Não me incomoda nada e até aprecio o seu toque que também me aquece. Aliás, sou feliz porque sei que ela precisa de mim e soube isso desde o primeiro dia em que me trouxe para o seu apartamento.<br />Estou com a Dona Alice há mais de 3 anos e a vida dela tem sido sempre a mesma: passa quase todos os dias em casa, limpando todos os seus cantos pelo menos uma vez por semana. Fala muitas vezes ao telefone, com aquela voz que deve chegar facilmente a todo o prédio. De manhã costuma ouvir rádio e à tarde vê televisão. Põe o som sempre muito alto. Até aposto que os vizinhos lhe rogam pragas, principalmente aos fins-de-semana de manhã. Mas, às vezes, quem vive por cima de nós também se vinga: um dia destes o adolescente do andar de cima pôs uma música cavernosa, o que deixou a Dona Alice desesperada e vociferante. Ela até chorou. As vibrações passaram por mim em cascatas sonoras e eu senti o corpo da Dona Alice a tremer. Escavacou uma vassoura no tecto e nem assim acabou com o estardalhaço. Furiosa, subiu ao andar de cima. Não tive outro remédio e também fui com ela. Um adolescente com um estranho corte de cabelo abriu a porta. Riu-se, trocista, e fechou a porta na cara da mulher. Ela ainda berrou mais e só quando desceu as escadas é que o som diminui. Até aposto que o rapaz esteve sempre a espreitá-la pelo olho da porta.<br />Quando não estou com a Dona Alice estou estendido na cama ou enrodilhado numa cadeira. Às vezes fico todo esticadinho atrás da porta do quarto ou da porta da casa de banho. Mas, muitas vezes, costumo ficar fechado num roupeiro. Não que a Dona Alice seja má para mim. Eu até não me importo. Só que no Inverno costumo ganhar alguns odores bolorentos. Ela nem parece notar muito. Sou capaz de andar meses assim, sem tomar um banho. Gosto do meu cheiro acabado de lavar mas não aprecio muito o modo com ela me lava. Giro e rodo de um lado para o outro, às vezes lentamente, outras numa completa vertigem.<br />No outro dia ela chorou (ela chora sempre muito) e depois limpou as lágrimas a mim. Quando secaram fiquei áspero. Eu não sou capaz de chorar. Mas às vezes também fico com os cheiros dela. Pelo modo como a Dona Alice torce o nariz sei se são agradáveis ou não.<br /><br />* * *<br /><br />A Dona Alice parece-me muito só e eu devo ser o seu único conforto e aconchego. Não passo de um simples roupão turco, cor-de-rosa. Ela comprou-me numa grande superfície e a etiqueta diz que fui fabricado na China. Sou 100% de algodão e posso ir à máquina de lavar a 40º. A minha função é ser um simples agasalho de trazer por casa mas sei que sou muito mais que isso. E a Dona Alice também.<br /><br />Francisco Duarte, 41 anos<br />Redactor publicitárioRPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142414351589673182006-03-15T09:17:00.000+00:002006-05-01T17:28:58.323+01:00Nasceu uma estrela?! (Ilustração concluída por Nuno Alves/Who)<strong>Já andava eu lá para os lados do castelo de São Jorge</strong>, a dar cambalhotas na escola de circo, e percorrendo Portugal de lés a lés com o “Cesta d ’artes”, quando recebi um convite da minha colega Sofia Cid. Formaríamos um grupo de coros femininos juntamente com a Iolanda Baptista, nossa colega, que na realidade tinha por apelido "Grelado", mas como odiava esse nome, tal era a sua semelhança com grêlo, adoptou o santo nome Baptista . Ainda faria parte do grupo, uma mulata amiga da Sofia. Realmente não me lembro do nome dela, mas também conforme entrou - saíu! A mulata não tinha andamento para “rock star” e depressa caiu no esquecimento das Cotonetes. Perdão, esqueci-me de referir que o nosso agrupamento vocal se chamava “As Cotonetes”, numa paródia às míudas que acompanhavam o Kid Creoule- as “Coconuts”. A diferença é que nós não éramos côcas malucas mas sim, objectos de higiene pessoal, que se propunham limpar o ouvido musical dos portugueses! Ah! E tínhamos a concorrência das “Valquírias” as moças dos Ena pá 2000, de que por ironia do destino eu viria a fazer parte 15 anos mais tarde.<br />Começámos a ensaiar, íamos fazer a tournée com os “Afonsinhos do Condado”, emprestando as nossas vozes ao albúm Açucar. As coreografias eram de primeira qualidade - direita, esquerda, frente, trás. Aquilo é que nós suávamos nos ensaios. Até estou cansada, só de me lembrar!<br />O look também é digno de referência. Como os Afonsinhos tinham um visual todo descontraído com um non sense q.b, nós resolvemos adereçarmo-nos com objectos da nossa preferência. Assim, a Sofia num fato de blusa e calção ás riscas pretas e brancas cheio de penduricalhos musicais- apitos, gaitas, cornetas, etc – assumia a sua veia poética terminando o figurino, com uma bóina emplumada e uns sapatos á Luis de Camões. A Iolanda, na altura dona de um look punk, tornou- se na “punkiosa” do grupo envergando o calção com a blusa de rede carregada de chaves, meia de rede e claro, a bela bota da tropa. O que era engraçado, é que a Iolanda era a mais certinhado grupo, sempre a refilar com os nossos comportamentos. Vai-se lá compreender como é que estas coisas acontecem?!! Bem, falto eu...eu, nessa época gostava da Marilyn Monroe, ainda gosto, há coisas que nunca mudam, e por isso assumi um ar mais «baby doll», com o meu vestidinho preto de tutus às bolinhas e de tules vermelhos, adornado por dezenas de palhaços de plástico, afinal de contas eu era e sou palhaço!<br />E foi nestes preparos e com as vozes afinadas, que iniciámos um ano de estrada com os Afonsinhos. Mais tarde, haveríamos de acompanhar os “Peste e sida” mas isso são outras histórias! Foram muitos concertos e bons. Mas, não há bela sem senão e um dia no Estoril, aconteceu algo que eu pensava só existir nos filmes escalão B de Hollywood.<br />Num dia de Verão com ventos ciclónicos, dávamos um concerto para os veraneantes da praia do Tamariz. O problema foi o som. O som no palco era perfeito, no entanto o som do público era levado pelo vento, de maneira que se ouvia tudo cortado, aos soluços. O público passou-se. Foi a histeria geral. Entre assobios e asneiradas, famílias numerosas abriram as lancheiras e começaram a voar na nossa direcção, laranjas, pêssegos e tudo o que houvesse á mão! Eu não estava a acreditar naquilo e como boa refilona que sou, preparava-me- agarrando numa laranja- para começar uma batalha campal. Em bom tempo fui impedida, pela nossa “punkiosa” com um ar reprovador.<br />Hoje agradeço-lhe, pois de outra forma a minha carreira musical teria morrido na praia do Tamariz, não podendo mais tarde ser protagonista de outras tantas aventuras de “rock star”. Essas, conto-vos noutra altura...<br /><br />À memória das Cotonetes- um beijo<br /><br /><strong>Suzie Peterson<br />36 anos<br />Aderecista, figurinista, mulher-palhaço, cantora<br />Lisboa</strong>RPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142414208832821102006-03-15T09:16:00.000+00:002006-05-07T22:18:34.943+01:00La Suerte para Hoy (Ilustração concluída por Alain Corbel)Ele era apenas um vendedor de lotaria. E sabe-se é sabido que aos vendedores de lotaria ninguém presta atenção. Todos os dias lá o via, como quem não vê, na esquina da minha rua. Sentado num banco de madeira pregava a sorte a quem passava: “La sueeeeeeerte para hoy!” O sotaque era espanhol. A estrangeira era eu. A rua era uma das mil que se enchem qual formigueiro humano diariamente em Barcelona. Foi há dois anos atrás.<br />Éramos vizinhos, o senhor da lotaria e eu. Todos os dias lá o via, como quem não vê, na esquina da minha rua. Todos os dias, a frase cada vez mais familiar juntava-se ao sorriso que dizia olá: “La Suuueeeeerte para hoy”.<br />Aos poucos fomos ficando amigos, como qualquer vizinho que se preze, amigos de sorriso diário e olhar cúmplice. Com o passar do tempo, já lhe reconhecia a ironia na voz quando apregoava: “La suueeeeeerte para hoy”. Percebi rapidamente que a sua escolha não era aleatória e de inocente tinha pouco. O senhor da lotaria só se dava ao trabalho de abrir a boca quando meninas bonitas por ali desfilavam. Era vê-lo girar a cabeça para a esquerda e para a direita, a controlar o movimento da “calle” com sorriso provocador. Quando surgia alguma menina mais “bamboleante”, tirava-lhes as medidas da cabeça aos pés e, com voz malandra e divertida, provocava - tão alto quanto fosse necessário para que olhassem para ele: “LA SUUEEERRRTEEEE PARA HOY”. A passagem diária pela banca recheada de papelinhos coloridos a prometer fortunas era já uma forma de começar bem o dia.<br />Uma bela manhã, decidi sentar-me ao seu lado. Afinal, já nos conhecíamos de longa data e quis ver pelos seus olhos. Com os olhos do vendedor de lotaria a quem ninguém presta atenção.<br />Chamava-se Maxi e ficámos à conversa cerca de duas horas. Surpresa atrás de surpresa. Apercebi-me que este vendedor de lotaria era na verdade o mais informado morador da cidade e que sabia tudo sobre o que passava em Barcelona e sobre maior parte das pessoas que por ali andavam, distraídas, diariamente . Não conseguia ir-me embora. Ficaria ali o dia inteiro, escondida atrás dos papelinhos coloridos a ouvi-lo e a rir-me por entre os piropos descarados disfarçados com a frase de sempre: “La sueeeerrte”. Nesta manhã, conheci também todos os seniors do bairro. Os velhotes, entre roupões, chinelos e bengalas pareciam estar sempre ali casualmente. Na verdade eram cúmplices da brincadeira de Maxi e reuniam-se ali para a gargalhada diária.<br /><br /><strong>Joana Pinto Correia<br />Jornalista e Relações públicas<br />26 anos</strong>RPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142413984428046432006-03-15T09:11:00.000+00:002006-05-10T17:53:01.586+01:00Nada nunca é demais ( Ilustração concluída por Angel de Franganillo)Ariel é um dos príncipes de Havana Velha. Príncipe de rua, um dos homens mais bem relacionados e conectados da cidade antiga de Havana. Ali há muitos vícios. Sexo, jogo a dinheiro e cocaína existem a rodos. Havana Velha é um grande centro de partilha sensorial e de trocas comerciais paralelas. As raparigas vendem o corpo em troca de roupa nova, enquanto eles se deitam com as turistas que procuram corpos negros musculados em troca de dinheiro vivo na mão. Há que fazer pela vida. Quem se safa melhor, quem tem os melhores contactos, quem é solicitado e respeitado pelos seus pares dentro do bairro, é um Príncipe. Vi pela primeira vez esta expressão num livro do escritor Pedro Juan Gutierrez e percebi que o Ariel encaixava na definição. Ariel era um ‘jinetero’ – expressão cubana para quem se prostitui com turistas, só com turistas - e um dos homens mais encantadores que conheci na vida. Cobiçado pela sua beleza, era requisitado para figuração de cinema, convidado para ser manequim em agências internacionais e várias turistas quiseram casar com ele. Recusou sempre, dizia que até podia casar com uma turista pra sair de Cuba, mas não com uma qualquer. Éramos grandes amigos. Ele não admitia ser jinetero, de facto era um Príncipe.<br />Comecei a ler a «Trilogia Suja de Havana» duas semanas antes de viajar para Cuba e fiquei escandalizada com as palavras que Pedro Juan Gutierrez punha na boca das personagens. Mas rapidamente percebi que os cubanos são de facto vulgarmente eróticos a falar, ou eroticamente vulgares, como preferirem. Aquela gente transpira sexo e Havana Velha - onde eu vivia - é um quase-bordel em forma de bairro popular.<br />Certo dia Ariel contou-me, ainda perdido de riso:<br />- Não imaginas o que vi no caminho até aqui, ia a passar em frente ao D. Giovanni e está um homem de bicicleta encostada num arbusto, meio tapado pelo arbusto a masturbar-se! A masturbar-se! Às 3 da tarde! O homem pára a bicicleta no meio da rua, encosta-se a umas ervas altas e começa a bater uma? Só depois é que percebi, no muro em frente estava um casal a fazer sexo e o homem passou-se, ficou ali a 20 metros deles a masturbar-se!<br />Eu desmanchei-me a rir e falei-lhe das cenas que Pedro Juan descreve nos livros, todas deste género e qual delas a mais inacreditável. Fiquei cheia de inveja, ao fim de 2 meses ainda não tinha presenciado nada gritantemente surpreendente, além da forma insólita como eles ali fumam charros, pelo nariz.<br />Mas alguns dias mais tarde contei eu uma história ao Ariel. À noite, estava à porta de casa do meu namorado, Django, no bairro da Ciudad Deportiva. Conversávamos ao portão com o amigo que nos tinha dado boleia depois do jantar e de repente ficamos em silêncio, parados a olhar para o Cadillac anos 50 que passava à nossa frente a 20 km/h. A música tocava alto, os vidros completamente rebaixados e lá dentro 3 silhuetas: dois homens na frente a rir à gargalhada e de garrafa de rum na mão, e uma mulata atrás, toda debruçada nos bancos da frente, de coxas ao léu, blusinha e cuequinhas minúsculas sem mais nada por cima do corpo. Ficámos só a olhar e nenhum de nós foi capaz de dizer fosse o que fosse durante um bom tempo. Só me passava pela cabeça que queria estar no lugar dela, e de certeza que eles queriam estar sentados naquele banco da frente.<br /><br />Carla Isidoro,32 anos<br />JornalistaRPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142413447441601782006-03-15T09:01:00.000+00:002006-05-05T12:29:20.336+01:00Recepcionista (Ilustração concluída por João Martins/Who)Sempre achei que demasiada humildade, demasiada inteligência, demasiado humor, demasiada paciência , demasiadas qualidades , era demasiado .<br />Como diz o povo : o que é demais chateia …<br /><br />Mas nunca pensei que demasiada honestidade fosse demasiado . Nunca até um dia …<br />Um dia , exercia eu a minha profissão de hoteleiro ( nunca gostei da expressão “ hoteleiro “ . sempre me lembrou as Tríades ou uma qualquer Irmandade do Mal…) quando a certa altura , foi necessária a contratação de um novo trabalhador . O hotel precisava de um Recepcionista .<br />Só quem já passou por um processo de recrutamento sabe o que aparece quando se pede um trabalhador para uma determinada profissão !<br />De repente toda a gente pensava que sabia ser Recepcionista de Hotel !! “ Afinal…” –terão pensado – “ …o que é que há pra saber ?! Um Recepcionista é o gajo que dá as chaves do quarto e diz onde é que um gajo pode ir jantar ..! …Eu sei fazer isso !!!”<br />Como alguém teria dito : “ Olhe que não … olhe que não … “<br />Então , de repente , começo a receber currículos de Electricistas , Pianistas , Reformados das Forças Armadas e o diabo a sete !! Tooooda gente era de repente competente para desempenhar a função …Afinal … quem não sabe dar um raio de uma chave ?!<br /><br />Selecciono os currículos e começo a fazer entrevistas . Um Recepcionista tem de ser alguém com apresentação , que fale fluentemente línguas , que tenha cultura e rapidez de raciocínio e , acima de tudo , como qualidade natural , tenha bom senso . É uma profissão que lida com as mais variadas pessoas , das mais variadas culturas , com os mais variados temperamentos . Uns chegam cansados aos hotel , outros vêm chateados com problemas com a agência de viagens , outros perderam-lhes as bagagens . Não é qualquer um que tem estofo de psicólogo e consegue acalmar , compreender e fazer-se compreendido por este vasto leque de pessoas .<br /><br />Chego finalmente ao indivíduo ideal . O homem tem tudo o que é requisito técnico .Tem boa apresentação , sabe línguas , tem até uma razoável experiência !! A entrevista corre muuuito bem . Até que chego à pergunta fatal :<br />“ Então e porque é que saiu do anterior emprego ? “ – digo já convencido de que “ tinha trabalhador “ .<br />Responde humilde e honesto : “ … Ah , diziam que eu roubaaaava … “<br />DOING !!!!!!<br />Não se pode ser demasiado honesto , nem demasiado humilde ou demasiado outra coisa …<br />Na sua honestidade , o homem lançava suspeição sobre a sua pessoa , logo , excluía-se à partida …<br /><br />Bom senso! Descobri o que lhe faltava …<br />Agradeci-lhe e telefonei-lhe mais tarde a comunicar que “ Havia uma pessoa mais qualificada , mas que ficaríamos com o seu Curriculum para uma próxima vez “ .<br />Se ao menos ele soubesse quando estar calado …<br /><br />Carlos Rosa, 34 anos<br />HoteleiroRPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142413259027314702006-03-15T08:59:00.000+00:002006-05-11T16:27:45.680+01:00Fiz meu rancho na beira do Tejo! (Ilustrador - Júlio Vanzeler)Olá moçada!<br />Há quase um mês na terrinha,muitas mudanças e muitas saudades!<br />Por aqui vamos todos nos adaptando,coisa não muito difícil pq Lisboa,"a<br />velha cidade",com suas Sete Colinas é realmente cheia de "encantos e<br />belezas"!<br />Ouvem-se brasileiros por todas as ruas,e sempre que nos reconheçemos pelo<br />sotaque,ficamos logo irmanados,solidários e cúmplices!rs!<br />Estamos por aqui aos montes,de todos o<br />estados...cariocas,baianos,goianos,sulistas e adventistas da feijoada do<br />sétimo dia...realmente "a misturar as culturas",todos trazidos pelos<br />sonhos,impelidos pela vontade e como são tenazes os que já aqui estão,pq a<br />crise tb ronda estas terras,apesar dos montes de guindastes espalhados pela<br />ruas naquele estágio de pré-arranha-céu!<br />Muitos africanos que coloriram o luso vestuário habitualmente negro,indianas<br />de lindos sáris e nobres e profundos olhos,e os ainda muito louros,muito<br />nórdicos,mas que por obra e graça do astro rei que por aqui ,acreditem-me é<br />nota dez,já estão todos com sua tez bronzeada,num lindo contraste,que os<br />torna bem mais felizes!<br />Lisboa é clara,muita,muita luz,que nos invade os olhos e alegra a<br />alma!Pra júbilo meu e de Norton,todos adoram tomar café,a todo momento,que<br />por aqui é encorpado,oloroso , democrático e servido com prazer pelas muitas<br />mesinhas espalhadas pelas praças e esplanadas!<br />Come-se muito e bem!<br />Regimes,só os militares de triste memória e dietas só as de engorda!<br />E pasmem:o Mac'Donalds que nestas ruas vc conta nos dedos,pra não falir<br />fragorosamente,teve que se adaptar e vender saladas e sopas!<br />Pras crianças,Bruno e Luíza,isso sim,foi um sinal quase bíblico de que as<br />coisas mudaram,e que eles agora estão morando em outro país!rs!<br />E Luluca pobrezinha,anda meio apavorada com o hábito de se comerem<br />coelhinhos,carneirinhos e ovelhinhas...todos com suas cabeçinhas suculentes<br />disputadas a tapa!<br />Está ameaçando virar vegetariana...horrorizada com o bicho homem e seus<br />abusos gastronômicos,baseados na impunidade de quem está no topo da cadeia<br />alimentar!<br />Norton Daiello,nasceu com bigodes n'alma!Já é local,adora a boa mesa,os bons<br />vinhos e meu pai que nestes assuntos não se faz de rôgado...<br />cozinha,cozinha e cozinha!<br />Bruno tem desafios pela frente!Qd chegar ao colégio estudará francês,o que<br />nesta globalização ditada pelos "Estados Unidos do Consumo",lhe soa quase<br />como aprender lituano!rs!<br />Mas como tudo na vida tem suas compensações,só perto de onde nós moramos<br />existem três complexos de cinemas que juntos perfazem umas 35 salas!<br />Haja euros!<br />Eu e gatinho,nos apresentamos no dia 12 de Agosto,com o nosso show de baixo<br />e voz em Serpa.Uma linda lua,numa praça medieval,cercados pelos muros do<br />castelo e os patrícios a cantar...sim,sim!Sabiam eles várias das músicas do<br />repertório e Noel lá do céu,caindo como o orvalho benfazejo...<br />Já fizemos duas entrevistas e a recepção não poderia estar sendo melhor!<br />Em breve novidades!<br />Torçam!<br />Sinto muita falta de todos vcs!<br />Ainda estamos sem computador em casa,mas já,já isto se resolve!<br />Estamos bem,nos conhecendo como "grupo",aprendendo a viver juntos,neste novo<br />velho mundo,aonde pra diversão das crianças,se bebe água direto da torneira!<br />Quem diria que a diferença entre o Rio de Janeiro e Lisboa seria o<br />Guandú?rs!<br />Fiquem com Deus!<br />Com amor,<br />Luanda,a Lulu de cada um...<br /><br />Luanda Cozetti<br />Cantora e elemento do duo «Couple Coffee»<br />LisboaRPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142413115815634402006-03-15T08:51:00.000+00:002006-05-01T17:13:51.020+01:00Pastor de Árvores (Ilustração concluída por Alain Gonçalves/Who)Estava eu sentado na paragem do autocarro à espera da carreira que ía de Vila de Rei para a Sertã quando, vindo do nada, apareceu um senhor na casa dos 70 anos, com uma bengala em madeira de marmeleiro muito resistente. Eu cumprimentei-o com um bom-dia. Ai que ele me retorquiu meio irado.<br />"Bom dia só se for para si, que é jovem. Agora eu, que sou pastor e tenho mais de 50 copas a meu cargo, que ainda por cima não são minhas, são do meu patrão que é mau como as cobras. Tão torcido quanto esta bengala que me guia há 34 anos."<br />Houve um silêncio no discurso dele, dando tempo para eu pensar no que ele queira dizer com “50 copas a meu cargo”. Não cheguei a conclusão nenhuma e ía-lhe perguntar isso quando ele entrou com uma conversa completamente diferente.<br />"Então você é daqui?" E com menos raiva na voz "Está a estudar? Mas na Sertã não há universidade nenhuma. Devia era fazer como o meu mais novo que foi para doutor. Isso é que dá dinheiro."<br />Eu devo ter feito uma cara muito estranha porque ainda estava a pensar na profissão do senhor e na mudança da conversa.<br />"Doutor médico é o que ele é. Dá bastante dinheiro ou pensa o quê?"<br />"Desculpe, você disse há bocado que era pastor de 50 cabeças de gado…"<br />"Eu disse que era pastor de 50 copas.", corrijiu muito chateado por ter repetido. "Os pinheiros não se alimentam sozinhos, deve pensar que a água e o adubo vêm por obra e graça do senhor." E ao dizer isto benzeu-se "Eu levanto-me todos os dias por volta das 8 da manhã para andar com os pinheiros por aí. Você havia de ver o sobreiro que encontrei abandonado. Não sei como é que as pessoas abandonam os sobreiros assim sem mais nem menos." Nunca tinha ouvido falar em tal coisa. O senhor devia ter um ou mais parafusos a menos.<br />"Mas como é que os pinheiros se mexem?"<br />"Já percebi, deve ser um menino da cidade. É de Lisboa?"<br />"Sim sou, estou aqui…"<br />"Nem vale a pena estar a falar mais, eu vi logo pelo ar. Isto não vem nos livros ou nos computadores. E eles não sabem nada." e virando a cara diz "Devia haver uma lei que obrigasse os lisboetas a visitar o campo." Tinha de lhe perguntar como é que ele pastava os pinheiros e o tal sobreiro abandonado. E ele continuou "Uma vez ou mais por ano para verem que os ovos não vêm do frigorífico, que eu já ouvi um de Lisboa a dizer isso na televisão."<br />Ele calou-se por um segundo e aproveitei.<br />"Desculpe, eu posso ser de Lisboa mas ambos os meus pais são daqui. E nunca tinha ouvido falar de pastar árvores. Sei que tem de se pastar as cabras, as ovelhas e vacas, mas árvores nunca. Como é que o faz?"<br />"Não são árvores, são pinheiros." diz ele de bengala erguida para o céu. "Só os pinheiros e sobreiros é que se pastam, as outras árvores não precisam."<br />"Mas…"<br />"Não vai para a Sertã? É que a camioneta vem aí."<br />Entrei na camioneta com a mesma dúvida, como é que se pastam as árvores ou os pinheiros como ele diz? Espero que quando voltar encontre outra vez esse tal "pastor".<br /><br />Duarte Nuno<br />28 anos<br />Copy Desk<br />MassamáRPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142412710780082682006-03-15T08:40:00.000+00:002006-05-01T17:35:52.093+01:00A escova de dentes é um símbolo! (Ilustração concluída por Yela)Os gestos, as atitudes, as acções à volta de uma escova de dentes. Aquele objecto, tão útil, tão necessário, e tão diário. Ninguém passa mais de um dia sem uma escova de dentes!<br />Já se pensou nisto, até se fala.. Ouvi eu recentemente entre amigas:<br />“A escova dele ainda está lá…” ou “bem, se no meu copo vejo uma escova ao lado da minha..passo-me…rrr…causa-me arrepios”.<br />O que pode significar uma escova, que valor terá?! Neste caso por exemplo, “ É que não a deixou assim meia perdida no lavatório, mas dentro do meu copo!...”<br />O objecto perdido, tão banal e rotineiro, mas que não abandonamos por nada, chegando ao cúmulo de levar apenas uma escova de dentes na mão, como aquela mais que tudo, que nunca vou deixar!<br />O que está por trás de uma escova de dentes?!...<br />É de facto vital, para o bem da saúde dentária e para o bem daquele com quem vamos trocar fluidos salivares…<br />Parece impossível, mas a porra da escova pode ser um sinal!!<br />Mulheres que reparam em todos os pormenores, e tudo ou quase tudo é considerado um sinal, ou é uma acção que transporta um gesto, e este um sentimento inconsciente!<br />Gestos, acções, atitudes, manifestações que transparecem ou demonstram, talvez o que se pretende ou pelo menos o que se sente! A sua naturalidade, expressividade e sinceridade, de facto talvez se relacionem com este objecto banal.<br />Pequenas grandes coisas…<br />É curioso como nunca deixaste a tua escova…<br /><br />Sara Bernardo, 24 anos<br />Agente EditorialRPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142335250577536182006-03-14T11:19:00.000+00:002006-05-07T22:25:36.866+01:00A velha que respirava poemas (Ilustração concluída por Vitor Ferreira/Who)<strong>Era Outono de 1996,</strong> eu tinha 18 anos, estava no meu segundo ano da Universidade. O colégio onde tinha aulas ficava a uns 20 minutos de casa e eu percorria esse caminho quatro vezes por dia, serpenteando as muralhas da cidade. Enquanto o caminho se fazia no centro da cidade, os meus olhos constantemente varriam as casas, as janelas, as portas, as pedras do chão; quando caminhava ao lado da muralha, gostava que os meus dedos fossem deslizando no granito áspero. Acabava o centro da cidade, de casas velhas e entrava na rua dos bairros novos, com menos para ver, onde as pessoas se cruzavam demasiado próximas de mim e fixavam os olhos nos meus. Incomodado, habituei-me a andar com os olhos postos no chão; no Outono, vendo as folhas secas douradas a voar dos meus pés a cada passo arrastado. O meu corpo guiava-se sozinho pelo caminho de tantas vezes e isso libertava-me o espírito, num estado de semi-hipnose. Um dia, fui interrompido no mergulho fundo da minha consciência. Vi uma mão no ar, acenando, presa a um corpo cilíndrico ridiculamente apoiado numa frágil bengala, coroado por uma farta cabeleira branca, que multiplicava o brilho da ténue luz de Outono. A mão acenava em direcção a mim ou em direcção ao mundo, em desespero. “Desculpe, perguntou a velha. Não foi consigo que eu marquei um encontro para dizer poemas?” “Não, não foi”, respondi com o sorriso com que cruelmente ferimos os loucos. Preparava-me para fugir dela como os lúcidos fogem dos loucos e os loucos fogem dos lúcidos, mas os meus olhos prenderam-se nos olhos dela, azuis profundos como profundo é o mar, cristais que se romperam na agudeza do meu olhar, desfazendo-se em água. E no meio das lágrimas, ela soluçava, levava a mão ao bolso, tirava um lenço enrolado, com que limpava as lágrimas e a saliva e, soluçando, pediu-me “Posso dizer-lhe um poema, só um poema, que os poemas são o meu oxigénio e sem eles eu sufoco e agonio?...”. Pode, pode, velha Milda,, encha os seus pulmões e derrame esse gás sobre mim... Milda Pinto, velha cilíndrica de farta cabeleira branca e olhos muito azuis quase cegos, nos seus 78 anos, desembrulhou poemas da sua memória, uns atrás dos outros, só parando para limpar a saliva que lhe saltava dos lábios, de vez em quando ajeitando a dentadura postiça e, no meio da poesia, a poesia dos velhos “os dentes são falsos, sabe?...” e lá continuava...<br />Cheguei a casa com a sensação que tinha vivido um sonho. No dia seguinte, a cabeleira branca brilhava no meio do cinzento do Outono, e os olhos azuis procuravam-me na vinda da universidade. Parava dia após dia em frente ao lar de idosos, onde a velha Milda, ridiculamente apoiada numa frágil bengala, escondia o muro que a sustentava atrás de si. Lançava-me o bafo fresco do seu oxigénio. Depois parava, falava dos filhos, dos netos, da sua juventude em Moçambique, onde os crocodilos, nos dias de cheia, vinham até à porta da sua casa, chorava, dizia que passava os dias à procura de quem lhe ouvisse os poemas; algumas pessoas paravam e fugiam, outras sorriam e não paravam, outras diziam que iam só ali fechar o carro e não mais voltavam. Chamava-me amigo, perguntava coisas sobre mim, mas gostava mais de falar sobre ela. Disse-me que escrevia poemas, que queria escrever um livro, mas que tinha tudo desorganizado, que precisava que eu lhe comprasse um caderno e lhe escrevesse tudo certinho, para poder enviar para a editora. Entrei no lar e recebi um maço de folhas velhas, de todas as formas. Comprei o caderno e passei noites a escrever poemas, a alma daquela velha confusa, poemas onde as frases se repetiam, como se tudo fosse um grande poema recortado e espalhado na imensidão da sua alma.<br /><br />“Em profunda análise<br />reconheço que o meu grande mal foi ter nascido.<br />Mergulho a pique no mar da minha imaginação.<br />Chego ao fundo. E vejo, claramente,<br />Como seria bom se tivesse morrido<br />Nesses segundos em que nasci.<br />Evitava todo o meu calvário.”<br /><br />Durante muito tempo deixei de encontrá-la no caminho para casa mas, não consigo explicar porquê, não bati na porta do lar, não a procurei. Meses depois estava sentada no banco do jardim, rendida à fragilidade da sua bengala. Chorou, disse esteve quase morta, caiu e bateu com a cabeça. Foi a última vez que a vi. No Natal deixei-lhe um cartão na caixa do correio mas não bati à porta. Não sei porque não o consegui fazer, mas penso que será sempre difícil para mim aproximar-me de alguém que não me acene com o braço. Dia 5 de Maio de 2000, soube, pelo jornal, que Milda Pinto, com 82 anos, tinha morrido. A minha cara amiga Milda, que cuspiu sobre mim a sua exaltação!...<br /><br />“Incontestável!... Encontrei-me.<br />Eu não sabia que era eu. Ignorava-me.<br />E, quantas vezes me olhei sem me conhecer.<br /><br />Encontrei-me acidentalmente,<br />E sem qualquer explicação.<br />Anunciei-me. Era eu. Ali estava.<br /><br />Vertical, autêntica, genuína como sempre.<br />Aonde? Em qualquer parte do Mundo.<br />E foi necessário ir tão longe?<br /><br />Que instante tão Divino!...<br />E quis logo conhecer-me – quero, pois,<br />Saber quem sou. Qual a minha origem?<br />Que fiz? Que faço e para onde vou?...<br /><br />Porque eu sou outra e não aquela que pareço.<br />E é essa oculta que eu desejo desvendar.<br />Autêntica ou duvidosa,<br />Concreta ou abstracta. Eu já lá não estava.<br />Já tinha regressado ao nada.”<br /><br />Eu acredito que sim: que somos eternamente responsáveis.<br /><br /><br /><strong>Leonel Silva, 27 anos<br />Doutorando em Química</strong>RPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142333503229298132006-03-14T10:50:00.000+00:002006-05-01T17:37:06.476+01:00Dos dois lados os lábios (Ilustração - Vasco Colombo)Há qualquer coisa de irreal, absurdo como um poema, no jovem que, de um lado da rua, envia numa parábola um beijo para a puta que guarda, com o olhar, do outro lado. O dia estava semi-frio, semi-encoberto... era apenas um semi-dia, em que a minha consciência não despertara completamente, nem o meu corpo pesado. Descia e subia as ruas da cidade à espera de uma novidade para os sentidos, mas até a beleza das casas me enchia de uma perturbadora monotonia. Precisava, urgentemente, de encontrar aquele instante que persigo diariamente, na esperança de transformar o meu quotidiano desnecessário num quotidiano com a pouca necessidade de um poema. E fui encontrá-lo nos dois jovens, separados por uma rua, mas unidos pela parábola de um beijo, lançado no ar e caído nos lábios daquela jovem puta. Tão tímido beijo e cheio de ternura, escondido pelos cabelos de palha suja – não se espera que uma puta receba beijos de amor; não se espera, sequer, que ela conheça o que isso é. Imagino que, quando, um dos lados da rua estiver solitário, enviando beijos no ar, o outro lado vazio esteja quieto, deixando o corpo ondular ao ritmo de uma presença que ignora, cerrando os lábios, sonhando com o momento em que a rua deixe de separar os seus lados e a parábola se encurte até se extinguir num ponto e as presenças deixem de ser insignificantes e até perturbantes. Tive vontade de arrancar dos dois lados os lábios, e uni-los, entrelaçá-los, atá-los em volta com a linha da invisível parábola. Não me faltam linhas de parábola para atar os beijos dos outros, eu que não tenho beijos para mim.<br /><br />Leonel Silva, 27 anos<br />Doutorando em QuímicaRPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142328655524705342006-03-14T09:29:00.000+00:002006-05-10T17:42:14.946+01:00Nóóvis (Ilustração concluída por Miguel Seixas/Who)― O que eu não gosto em Lisboa é a sua face de metrópole, a confusão, o buzinar dos automóveis que se atropelam, o bater acelerado dos sapatos nas calçadas, a as pessoas de rostos apagados,o consumismo dos centro comerciais…<br />Tenho de admitir, desde já, que tenho fobia a multidões. Prefiro o singular ao plural; gente peculiar e diferente. Mas, Lisboa num domingo é o cenário ideal para poder apreciar as várias personagens que vagueiam pelas ruas, pelos metropolitanos como se naquele dia de descanso tivessem muito que fazer.<br />Num destes domingos, véspera de 1º de Maio, apanhei o metro no Saldanha com destino ao Chiado.<br />Poucas pessoas aguardavam calmamente a chegada do metro. Ao meu lado sentados num banco gasto, estava um casal de aspecto muito comum, estilo classe média baixa, sem vestígios de qualquer tipo de loucura.<br />Ele vestia fato claro, bem aprumado; ela roupas baratas, bem posta, igualmente. Na cara tinha, apenas várias rugas sulcadas e as olheiras negras encovadas manifestavam sofrimento, ou talvez noites mal dormidas. Ou, talvez ainda, fosse o normal desgaste dos anos.<br />― Senta-te direito. És sempre a mesma coisa. Não se pode sair à rua contigo. ― vociferava ela<br />Ao contrário do que poderia parecer o homem permanecia impecavelmente direito e sorria apenas, olhando em frente, sem lhe dar qualquer resposta.<br />Ela, não satisfeita olhava um mupi de publicidade e explicava:<br />― "Ciao" é italiano e "um beijo" é português. Não sabias isso ?<br />Ele ri-se sonoramente rompendo o silêncio, mas permanecendo imóvel.. Ao que ela replica :<br />― Não sabias? "Ciao" é italiano e "um beijo" é português! O que é que tu tens aprendido na puta da vida, anh? Diz lá! Nada. Não sabes nada!<br />Levanta-se e põe-se em frente dele de mãos nas ancas, falando, agora, mais alto.<br />― Sabes o que vais fazer? Compras um caderno e vais apontar tudo o que não aprendeste na puta da vida. É o melhor que tens a fazer.<br />Ele olha em frente, atravessa-a como um raio-X e ri-se perdidamente, mantendo a postura. Ela senta-se e diz já estar farta dele. Imprevisivelmente, ele lê no quadro publicitário:<br />― "Nóóvis" .<br />Ela emenda com a maior certeza do mundo:<br /><br />- "Novíís, Novííss". Nem ler sabes.<br /><br />Ele levanta-se entra rapidamente no metro e ela vai calmamente atrás dele resmungando entre dentes.<br /><br />Ilda Teixeira, 39 anos<br />Actriz<br />TondelaRPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142328498352615212006-03-14T09:25:00.000+00:002006-05-16T14:47:40.640+01:00O que o mar me trouxe (Sem ilustrador)Nunca pensei que um dia o mar me pudesse trazer alguma coisa. Mas uma vez trouxe.<br />O Atlântico deve ter uma estranha forma de recompensar as pessoas. Afoga-as, esventrando os seus navios, e depois larga na praia restos de vidas. Camisolas ensopadas, alguns objectos pessoais e muitos sacos de plástico. Quando está mal-disposto, o mar pouco mais nos dá a não ser dor, lixo e desespero.<br />Não estava preparado para um golpe de sorte mas, sem o saber, eu estava sentado na areia à espera dele. Aproximou-se de mim e falou numa voz juvenil.<br />— Desculpe, tem horas que me diga?<br />Levantei a cabeça e o meu olhar encontrou uma mulher jovem, de longos cabelos louros numa cara de menina mas num corpo longilíneo. Olhava-me fixamente com uns olhos de um azul muito mais perto da cor do céu do que da cor do mar. Por momentos fiquei boquiaberto, como se estivesse a ver uma sereia que naquele momento acabara de me paralizar. Adivinhando a minha hesitação, ela continuou, impaciente:<br />— Tem horas, se faz favor?<br />A sua voz, apesar de alguma rispidez na pergunta, era suave e encaixava-se perfeitamente no seu aspecto jovem e descontraído. O blusão de aviador que vestia estava fechado até cima e os jeans apertados faziam-na ainda mais alta do que parecia. Com a sua figura esbelta, calculo que nunca passasse despercebida.<br />— São 5 e meia. — Disse eu, numa voz que pretendi grave mas que me saíu ligeiramente estridente.<br />Logo aí devo ter perdido alguns pontos na sua consideração, se é que eu valia alguma coisa na sua escala de valores.<br />De onde tinha surgido ela? Eu estava a olhar para o mar, perdido lá ao fundo, num horizonte de pensamentos e esta figura aparecia como se do nada viesse.<br />Nos seus poucos gestos e escassas palavras só pude fazer conjecturas: adivinhei uma mulher decidida mas esquiva, exibindo um olhar que diz muito de si, mesmo julgando que não se revela aos outros. A cor e a expressão dos seus olhos deve traí-la muitas vezes, deixando-a vulnerável. Mas é uma fragilidade aparente, pensei eu. Sente-se a sua fibra muito para além de uma cara ainda adolescente.<br />“Bolas, como é atraente”, engasguei-me neste pensamento.<br />Num curto espaço de tempo, quando até as ondas do mar deixaram de se ouvir, vislumbrei a sua sinceridade e timidez num rubor tão evidente que me deixou enternecido.<br />— Obrigado.<br />Baixou a cabeça, ainda com a cara vermelha, e passou por mim, deixando um leve e discreto perfume no ar, que logo se misturou com a maresia. Por um momento pensei em rodar a minha cabeça na sua direcção e inventar uma pergunta tola só para ela me olhar de novo com os seus magníficos olhos azuis. Não tive essa coragem. Em vez disso, levantei-me e comecei a caminhar na direcção oposta, trilhando as suas pegadas na areia molhada. Segui-as, tentando perceber de onde tinham surgido. Para meu espanto vinham directamente do mar.<br /><br />Francisco Duarte, 41 anos<br />Redactor publicitárioRPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-23966792.post-1142242797357796282006-03-13T09:36:00.000+00:002006-05-05T11:39:30.240+01:0010 donuts - Ilustração concluída por rui[lúcio]carvalhoTinha que ir buscar a minha mãe. Era cedo, mas o trânsito em Toronto já estava caótico e não perdi tempo a tomar o pequeno-almoço. Entre ir do hotel à casa dela e chegar à autoestrada passaram uns bons 125 minutos, que é como quem diz 2 horas e cinco, que a a minha mãe não é mulher para me deixar queimar sinais vermelhos nem fingir que não vejo um traseunte a tentar atravessar estrada, por muito atrasados que já estivéssemos.<br />Fome, estava cheio de fome.<br />“Mãe, vou parar 5 minutos na próxima estação de serviço para comprar um café e um donut. Quer alguma coisa?”<br />“Traz-me um donut também. E um capuccino, se fazes favor. E não te demores que o tio está espera”, disse ela.<br />Quando entrei no coffee shop da estação de serviço estavam 3 pessoas à minha frente e as mesas razoavelmente cheias. A senhora ao balcão parecia eficiente, não ia demorar-me muito.<br />“ Bom dia. Quero um café, black, no sugar, um capuccino e 2 donuts”.<br />A senhora apontou para um pequeno cartaz sobre a prateleira dos donuts e disse:<br />“Só vendemos 10 donuts”.<br />“10 donuts? Mas eu só quero dois. Não pode vender-me só 2?”<br />“Não. Desculpe mas só posso vender 10 donuts”<br />“Mas os donuts não vêm em packs, porque é que só pode vender-me 10 donuts? E que raio de número é esse? Porque não 6 ou 12? Porque 10?”<br />A senhora, que continuava a parecer eficiente, retorquiu imperturbável:<br />“Lamento, mas são as regras da casa. Só posso vender-lhe 10 donuts. 10 donuts, 2 dólares”.<br />Não me parecia que ela fosse mudar de ideias, por isso suspirei e disse:<br />“Ok, então levo 10 donuts, um café, black, no sugar e um capuccino”.<br />A senhora dirigiu-se à prateleira dos donuts, pegou num saco de papel e começou a enche-lo. Depois parou. Sem largar o saco, chegou novamente ao pé de mim e disse com ar compungido:<br />“ Peço desculpa mas não lhe posso vender os donuts. Só tenho 9. Quer escolher outra coisa?”<br />“O quê???? Não me pode vender os donuts porque só tem 9?<br />“Exacto, só tenho 9 donuts. Vai ter de escolher outra coisa”.<br />Por esta altura a fila atrás de mim já tinha crescido e tanto e as pessoas nas mesas começavam a prestar atenção à conversa.<br />“Não quero outra coisa, quero donuts. Aliás só quero 2 donuts. Venda-me 2 donuts já que não tem 10”.<br />“Não posso, regras da casa. Só posso vender 10 unidades”.<br />Fuck. Aquela conversa estava a passar os limites do bom senso, o tempo a passar, a mãe no carro, o tio à espera e a fome quase a ultrapassar aquela barreira que nos diz que afinal não já não queremos comer nada.<br />“10 unidades? Disse 10 unidades?”<br />“Exacto, 10 unidades”<br />“Ok”, disse eu já com saliva de raiva ao canto dos lábios, “Ok, passe-me o saco, se faz favor”.<br />Ela passou-me o saco com ar interrogativo (e ainda eficiente).<br />Peguei no saco e despejei-o sobre o balcão.<br />“Uma unidade”, disse eu colocando um donut dentro do saco, “Duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito”.<br />Peguei no nono donut e parti-o ao meio. “Nove, dez. Dez unidades. Está bem assim? Posso pagar?”<br />A sala encheu-se de gargalhadas e do meio delas surgiu a voz da senhora, vendedora de balcão encartada, habituada a lidar com as excêntricidades de clientes estúpidos e teimosos como eu.<br />“10 unidades, 1 café e um capuccino. São 3 dólares e 50”.<br />Paguei, destribuí sete donuts pelas mesas no caminho até à porta, saí e entrei no carro.<br />“Michael, porque é que demoraste tanto tempo a comprar 2 donuts e 2 cafés? Estamos muito atrasados filho”.<br />O sabor daquele donut foi qualquer coisa entre euforia e frustação. Mas comi-o todo e lambi os dedos.<br /><br />Tita Martins, 41 anos<br />Account DirectorRPhttp://www.blogger.com/profile/14403408219141213852noreply@blogger.com1